Educadores aborrecidos educam crianças aborrecidas!

Carta aberta de uma criança...aborrecida!




Estou farta…! 
Estou tão farta!


  Estou farta de bonecos de neve. Os bonecos de neve deveriam ser abolidos do Jardim-de-Infância…e os flocos de neve também. No Jardim-de-Infância os bonecos de neve deveriam ser construídos se, e só se nós, crianças, fizéssemos uma visita à Serra da Estrela ou a Montalegre!


    E também estou farta de celebrar a primavera em dias que parecem inverno! Porquê que me mandam celebrar a primavera sem nunca me terem levado a ver a primavera?! A cheirar a primavera?! A tocar na primavera?! A sentir a primavera! Mas o painel ficou bonito, os pais gostaram! E o coordenador também!


   Ah. E por falar em painel... Também estou farta de tirar fotografias só para o painel. De participar nas atividades durante cinco segundos... só para a fotografia! 


    E estou farta de fazer flores de primavera… e coelhinhos da Páscoa… e pais natais… e coraçõezinhos… Aliás o problema não está em fazer, porque eu gosto de fazer. Eu até sou uma criança ativa com “boas competências ao nível da motricidade fina”, segundo a tua avaliação sobre mim. Mas, estou farta de fazer “trabalhinhos” exatamente iguais aos meus amigos da sala, e aos meus amigos de Lisboa, de Bragança, de Santarém, de Aveiro… Estou farta que não me perguntem como quero fazer… Estou farta que não me deixem pensar!


   Sim, é exatamente isso. Estou farta de reproduzir. Quero pensar e refletir para poder criar! Isto mesmo, quero criar. Eu sei criar. E estou farta que não me deixem.


   Estou também farta que o meu comportamento se resuma a uma cor: verde, azul ou vermelho. Mais do que colorires o meu comportamento, apenas te peço que procures compreendê-lo. Se aos teus olhos me "porto mal", já te questionaste sobre o porquê?


    Estou também farta que me avalies com um "adquirido", "não adquirido" ou "em aquisição". Não, eu sou mais do que um aglomerado de cruzes. E tu, que acompanhas o meu viver dia após dia, ao longo de vários anos, conheces-me bem melhor do que uma grelha!

 

    Ah, e estou farta de fazer trabalhinhos com materiais “recicláveis”. E acho muito engraçado quando trazes pratos de plástico (novos), palhinhas (novas) ou paus de gelados (novos), e me dizes que vamos fazer um trabalho com materiais “reciclados”! Sim, estou mesmo farta de aprender a reciclar e preocupar-me com o ambiente quando, na realidade, sou levada a utilizar cerca de cinquenta folhas por dia… e cartolinas… e papel crepe… e papel vegetal… e papel, papel e mais papel! Quando o que eu gosto mesmo é de escrever na terra e cortar o vento!

 

    Estou cansada de ter os meus dias definidos por festividades. E estou farta que me digas o que vou dar ao meu pai e à minha mãe. De celebrar só por celebrar. Eu só quero e preciso que brinquem comigo! Que me amem. E os meus pais não precisam de mais nada além de mim! Precisam, simplesmente, que seja feliz! Mas aceito que queiras que eu lhes dê uma lembrança, é importante que celebremos as datas mais importantes. Agora ouve-me, por favor, ouve o que tenho para dizer! Sabes que não é por aceitar a lembrança do dia do pai e do dia da mãe que não deixo de estar farta de celebrar todos os dias do calendário, certo?


    Estou farta de outra coisa. Mas tenho medo de te dizer, não vás querer que eu fique sem o meu tempo preferido no Jardim de Infância: o recreio. Mas estou farta de ficar sentada a ouvir-te sem que me ouças a mim! Gosto quando me ouves de verdade e me respondes com sinceridade. 

 

    E não sou apenas eu que estou aborrecida! 


Peço-te que continues a dar o melhor de ti. Por mim! 

Sabes melhor do que ninguém aquilo que eu preciso... 

Na verdade, só preciso de ser feliz!

 

 

Um Educador de Infância!

Fábio Gonçalves

Comentários

  1. Muito bom! Já algum tempo que não lia algo tão prático.
    Escolas/J.i./ Salas com muitos trabalhos expostos são sinónimos de salas em que as crianças não usam a brincadeira como actividade principal...

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  2. É bom ler isto, pensar nisto e praticar isto. Infelizmente, esta é realidade na maioria dos JI... que haja educadores corajosos o suficiente para mudar ISTO!

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  3. Muito bom este texto! Parabéns, excelente. Sinto-me como essa criança, também eu cansada, aborrecida... farta...
    Autoriza-me a partilhar?

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    1. Que a partilha possa contribuir para que haja cada vez menos crianças aborrecidas!
      Grato.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. É muito gratificante ter colegas de trabalho com os quais nos identificamos profissionalmente, que pensam e que, de facto, trabalham assim! Também é realmente muito bom sermos Educadores numa instituição que nos permite e nos incentiva trabalhar assim. Isso faz toda a diferença, não é?

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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    Respostas
    1. Removi o meu texto porque me repeti sem ter percebido que me tinha respondido.
      Partilhei o seu texto no meu blogue e os comentários têm sido interessantes. Acho que faz sentido alertar educadores para este tipo de práticas mas também os pais.

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  7. Partilho da mesma opinião por vezes também me sinto aborrecida....ou partilhar!!!Obrigada

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  8. Parabéns à "criança" que teve a coragem de de se "revoltar". Muito bom!!!

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  9. Muito, mas mesmo muito bom. Obrigada. Vou partilhar

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  10. Fábio! Por favor vem para Lisboa!!! Colegas que se identificam profissionalmente com esta criança, onde andais? Preciso urgentemente de encontrar na minha escola alguém revoltado como esta criança que fala de dentro do Fábio. Obrigada por este texto. Beijinhos

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  11. Muito Interessante, mas como em tudo na vida, nem tudo ao mar nem tudo à terra. Aliás é por causa de irmos de extremos a extremos que a Educ de Inf caminhou para aqui. Como já sou velhota na carreira...Precisamos sempre de inconformados reflexivos e isso é ainda mais fantástico. O passado não é bom o presente tão pouco caminhemos com arte e mestria no inovar experimentar e amar este oficio como as crianças merecem. Um abraço pedagógico

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  12. Mesmo isso! E ainda bem que não fazemos nada disso na minha sala :)

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  13. As crianças do Jardim Escola João de Deus do Porto escreveriam EXACTAMENTE esta carta, sem tirar nem pôr. Acrescentariam apenas que as crianças de 4/5 anos têm apenas 1:15 de recreio LIVRE e que o 1º ciclo tem 1:00. Tiram-lhes a criatividade, tiram-lhes a autonomia, tiram-lhes a infância...

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    1. Gabriel e os pais não conseguem fazer nada em relação a isso?

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    2. Os pais acham que "aprender brincando" é o mesmo que recreio livre. Não é, de todo!
      Além da falta de recreio também ouço comentários acerca das professoras que estão sempre a gritar e que é normal porque "todas as professoras de todos os bibes berram". Ou os faz-de-conta a brincar às escolas onde os vejo a berrar, a ralhar com os alunos e a colocá-los de castigo porque que são impossíveis de aturar e estão sempre a falar. Ou uma brincadeira de uma professora que disse "ai que eu mato-te". São situações deste género umas atrás das outras. Dizem que estas crianças fazem o 5º e 6º ano com uma perna às costas e que por isso a escola é boa. Uma escola onde as crianças têm de ficar caladas durante 6 horas e meia a receberem matéria, a serem mandadas fazer esta ou aquela brincadeira porque agora existe uma coisa chamada "actividades" que são brincadeiras que o professor manda fazer (ou brincadeiras que se faziam antigamente ou atirar bolas ao cesto/baliza a mando do professor). E por causa destas actividades as crianças do 1º ciclo ficam com menos 1/2 hora de recreio e as mais pequenas com menos 45 minutos de recreio. Ah, e quando estão nestas "actividades" não podem falar para o lado. Isto é o Jardim Escola João de Deus do Porto. Uma escola onde as crianças não têm autonomia, capacidade crítica, ou criatividade. As aulas de "expressões artísticas" do 1º ciclo são pintar papéis com desenhos impressos sem sair fora do risco. Crianças extremamente criativas tornam-se banais e obedientes no espaço de um ano. Os desenho são todos iguais e o sol é sempre amarelo e o céu azul porque "essas são as cores correctas".
      Ninguém vai poder devolver a infância a estas crianças. Serão adultos obedientes aos seus superiores sem uma faísca de genealidade mas, atenção, vão fazer o 5º e 6º ano com uma perna às costas porque vão extremamente bem preparados. Gostaria de saber é o que é que vai acontecer a partir do 7º ano.

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  14. Costumo dizer que atualmente as crianças são mão de obra barata para adultos (se) exibirem!!

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  15. Parabéns Fábio... Obrigada...muito obrigada 🙏🏻 por vezes sinto-me um salmão a desovar (não sei se me faço entender), um alien.

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  16. Finalmente... Alguém do mesmo planeta que o meu...

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