Carta aberta de um Educador de Infância: Quando as crianças me ralham!
Elas ralham-me.
Todos os dias, sem exceção, as crianças ralham-me.
Ralham-me quando não as ouço. E eu até gosto de as ouvir.
Mas às vezes há coisas mais importantes para fazer ou papéis para preencher.
Ralham-me quando sugiro que se sentem com a entoação do
verbo “mandar”.
Ralham-me quando não como os bolos de plasticina que
meticulosa e delicadamente preparam para mim… porque, segundo eu próprio, os
bolos fazem mal à barriga.
Ralham-me quando não me sento a ler-lhes uma história. Não,
não é isso… histórias eu leio, todas as semanas, todos os dias… estou a falar
daquelas histórias ouvidas ao colo… aconchegados no conforto e na simplicidade de uma biblioteca, ao som da melodia de um terno abraço. Ralham-me quando não lhes desperto
aquele gosto pela leitura… aquele gosto que tão poucos reconhecem e tantos
desconhecem!
Ralham-me quando lhes digo que sim, só porque sim e lhes
digo que não, só porque não. Ralham-me quando não lhes explico ou lhes dou uma razão!
Ralham-me quando não lhes respondo aos porquês. De vez em quando
lá lhes respondo… mas por norma falta-me a sensatez.
Ralham-me quando as garrafas têm de se transformar,
obrigatoriamente, num boneco de neve… ou numa flor… ou numa árvore de natal.
Ralham-me quando vivemos a vida a partir de datas, festividades e comemorações.
Ralham-me quando estou demasiado preocupado (e ocupado) com
as suas dificuldades… em prol das formalidades!
Ralham-me quando me esqueço. Quando me esqueço de um “tudo”…
que para mim não passa de um “nada”.
Ralham-me quando as resumo a três áreas: Formação, Expressão e Conhecimento… e me esqueço que são seres sociais que querem a oportunidade para comunicar com o mundo. Que fazem parte do mundo.
Ralham-me quando faço questão de as transformar em
marionetas para as minhas mãos e em fantoches para os meus dedos, quando não as ouço.
Ralham-me quando as faço sentir que a vida delas no
jardim-de-infância é “isto e apenas isto e não passa disto”. Quando até sei que a vida no jardim-de-infância pode ser tão melhor do que isto.
Ralham-me quando não as respeito da mesma forma como quero
que me respeitem a mim.
Ralham-me quando só penso numa pedagogia que não tem como
resultado a harmonia integral de cada uma delas.
Ralham-me sempre que lhes ralho, mesmo sem lhes ralhar.
Hoje apenas vos peço que continuem a ralhar-me (a ralhar-nos).
Parece-me possível.
Ralhem-me... continuem a ralhar-me com o vosso silêncio.
E com isso façam-me crescer.
Façam-me ser melhor para vos dar o melhor.
Enquanto me ralham, consigo perceber o que posso melhorar!
Um Educador de Infância,
Fábio Gonçalves
Gosto muito. Porque cada palavra me dá um recado urgente e me faz refletir! Obrigada Fábio por mais um texto magnífico.
ResponderEliminarDe uma sensibilidade rara. Adorei 😘
ResponderEliminarObrigada, muitas das vezes ignoramos não por mal, mas por falta de tempo, hoje e cada vez mais tento, prevaricar nas obrigações não inerentes a sala, e sabe tão bem.
ResponderEliminarCom o passar do tempo ralham-nos cada vez mais e o passar do nosso tempo não pode ser razão nem desculpa para deixarmos de ouvir o silêncio das crianças que nos rodeiam e tão pouco da criança que vive dentro de nós e por vezes se deixa adormecer. 😘😘
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarAmei
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