Carta aberta de uma criança que regressa: preciso que me ouças!
Preciso
que me dês liberdade. Mesmo que seja dentro de quatro paredes conseguirei,
certamente, sentir-me uma criança livre. E não preciso de muito. Em vez de uma
folha vinda diretamente da impressora, basta-me, simplesmente, a folha. Em vez
de sentar-me a ouvir uma história, basta deitar-me. Para quê uma posição obrigatória?
Em vez de fechar os olhos enquanto faço um grande esforço para te ouvir,
basta-me dormir. É isso. Preciso de liberdade para poder
viver. Num tempo que é meu, dentro de um tempo que também é teu. Preciso que o
teu e o meu se transformem num tempo nosso. Tão nosso!
Sim.
Eu preciso de SER. Preciso que me deixes ser o que sou. Preciso de FAZER. E que
me permitas fazer da forma como fizer. Livremente. Preciso de VIVER. Viva eu como viver.
E
preciso de regras. Preciso que me imponhas regras quando eu não for capaz de as
impor a mim próprio. Preciso que, de vez em quando, me digas que os talheres
não são na máquina de lavar roupa. Preciso que me digas que a tinta não é para
pintar as paredes (da sala!) nem o fogão. Que os livros não são para espalhar
pelo chão.
Mas
também preciso que não me condenes por querer transformar legos em batatas
deliciosas. Que opte por passar mais tempo por baixo da mesa do que sentado à
mesma. Que prefira corridas de caracóis às corridas de carros. Que prefira
brincar com tudo o que não é para brincar do que com a panóplia de brinquedos
estruturados para a minha idade, que religiosamente preparam para mim. Prefiro
madeira ao plástico. Prefiro a Água. A Terra. O Vento. Prefiro a vida no seu
estado mais puro.
Preciso que me ouças. Um dos meus direitos
deveria ser: direito a ser ouvido. Mas não apenas um ouvir somente por
ouvir, até porque, como deves saber, não falo só por falar. E
quando me escutares espero de ti,nada mais nada menos do que juízos justos
e reais. Espero de ti, acima de tudo, sinceridade nos teus julgamentos.
Por isso, não tens de usar sempre o “que giro”, o “parabéns” ou o “muito bem” para tudo o
que faço. É que na maioria das vezes olhas para o que faço…mas nem sempre vês. E às vezes faço coisas tão "giras"!
Preciso
que me deixes criar e usar a minha criatividade. Eu sei que é giro fazer
coisas giras… mas eu preciso de bem mais do que isso. Preciso de ter poder de
decisão naquilo que faço e quero fazer. E para giro já basto eu.
Preciso que me desafies constantemente e me leves a dar cada vez mais de mim
e, com isso, fazer cada vez melhor. Quero que aprecies as minhas produções e
criações e teças comentários adequados. Que me eleves para um patamar que,
só por mim, poderei demorar mais a alcançar. Por isso, preciso de
ti. Sempre.
Preciso
que planifiques as tuas ações comigo. Não apenas naquilo que tu queres, mas
também com base no que diariamente te dou e que a ti faço chegar. E eu dou-te
tanto. Todos os dias. Para isso basta ouvires-me, mesmo que esteja em silêncio.
Preciso
que saias da tua zona de conforto. Que esqueças o tradicionalismo. Que inoves.
Que faças diferente. Positivamente diferente. Que te adeques ao que eu sou hoje
e não ao que fui ontem.
Preciso
de rotinas. Mas também preciso de fugir das rotinas dentro das rotinas que me
dás. Quero que tentes e que erres. E que me deixes tentar para errar. Só assim
poderei crescer. Só assim aprenderei a Ser. E é assim que se aprende a viver.
Preciso
que me deixes correr no asfalto. De gritar no alto de uma montanha. De nadar
num imenso mar. E se não pudermos sair para o fazer deixa-me, pelo menos,
fazê-lo na minha imaginação. Isso. Deixa-me sonhar. Imaginar. Criar em
pensamento.
Preciso
que percebas que não é uma bata que vai fazer com que seja igual. Não.
Igualdade não é isso. Podemos falar de igualdade, sim… podemos. Mas
falemos também de um direito à diferença. Uma diferença que
enriquece naturalmente a vida de cada um. Eu preciso de viver com a
diferença. Melhor… eu preciso de viver na diferença. O problema não
está no uso da bata… não. O problema está nos pressupostos que
muitas vezes sustentam inadequadamente a sua utilização. Para não me
sujar? Aceito – mais ou menos, mas aceito. Para ser igual? Não, obrigado.
Preciso que me dês tempo. E tu até me dás tempo. Tempo para isto. Tempo para
aquilo. Mas, se há crianças que conseguem estar sempre em atividade, eu preciso
de tempo para não fazer nada. Tempo para ter tempo de parar. Isso mesmo, por
vezes preciso de não ter nada para fazer. Às vezes é tão bom não fazer nada. E
quando me vires sem fazer nada, acredita que estarei a fazer muito.
Preciso
que continues a dizer-me “não” com firmeza e “sim” com certeza, como tão bem o
fazes.
Preciso que tenhas confiança em ti e que a demonstres no tempo que passas
comigo. Nunca te esqueças que tudo o que fizeres, para mim, é bem feito.
Por isso supera-te a cada dia. Dá o melhor de ti. Para mim, mas por ti.
Independentemente de tudo, preciso de ti. Preciso tanto de ti. Tal como tu
precisas de mim. E eu sei que mesmo espalhando os brinquedos pela casinha,
mesmo que diga sim quando dizes não, mesmo que te faça levar as mãos à cabeça
quando vês o estado em que a sala ficou depois das minhas experiências
mirabolantes com água, tinta, terra e tanto mais... mesmo que chegues a casa e tenhas de continuar a trabalhar para
mim (e para nós!) durante horas… eu sei que te faço feliz.
E
por mais que faça, por mais que diga… sei que te faço feliz todos os dias.
Porque sou uma criança, entre tantas outras que tu tão bem sabes amar!
E foram estas crianças que resolveste amar e abraçar todos os dias da tua vida.
São elas que nunca irão desistir de ti... e te farão sorrir... mesmo em dias em que só te apeteça chorar.
Eu sei que as vais fazer felizes.
E sabes porquê?
Porque, na verdade, são elas que te vão fazer feliz a ti!
Um
Educador de Infância,
Fábio Gonçalves
É belo pela sensibilidade, pela pureza, pela assertividade em cada palavra e pela exigência tão doce que passa pelas nossas mãos diariamente... Parabéns Fábio! És admirável
ResponderEliminarExcelente!!! Parabéns!!! Escutar...
ResponderEliminarExcelente!!! Parabéns!!! Escutar...
ResponderEliminarMaravilhos, simples e sentimental.
ResponderEliminarMuito bem
ResponderEliminarCom rara sensibilidade foi dito tudo o que devíamos intuir. Fiquei encantada e até comovida
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